I. Introdução
O presente trabalho surge no âmbito da cadeira de Perspectivas Africanas dos Fenómenos Psicológicos.
Pretende-se com o mesmo apresentar o conceito de pessoa tanto na perspectiva ocidental, assim como numa perspectiva africana, particularmente do povo bantu do qual Moçambique faz parte, analisando as diferenças e semelhanças entre elas. Daí que o tema de estudo do mesmo é: “O conceito de Pessoa no Contexto Moçambicano”
Para a concretização do trabalho recorreu-se à revisão bibliográfica de obras relativas ao tema em questão.
O trabalho apresenta a seguinte estrutura: i. Introdução, onde se faz uma apresentação geral da essência do trabalho; ii. Desenvolvimento do tema, no qual é apresentado o conceito de pessoa na visão de Carl Rogers e numa perspectiva Africana; iii. Conclusão, em que se faz uma confrontação entre as duas abordagens apresentadas no desenvolvimento do tema, apresentando os aspectos comuns e as respectivas diferenças. Por último são apresentadas as referências bibliográficas.
II. Visão de Pessoa para Carl Rogers
Segundo Hansenne, M. (2004) a actualização constitui uma noção central para Rogers na concepção da pessoa. Ela é definida como uma tendência inata que os organismos têm para desenvolver todas as suas capacidades, de forma a manterem e melhorarem os seus estados. Logo, para Rogers a auto-actualização significa que a pessoa tenta, ao longo de toda a vida, explorar as suas potencialidades, afim de se fazer cumprir plenamente e de almejar uma vida melhor.
Rogers citado por Hansenne, M. (2004) concede um lugar importante à noção de Si. Esta determina de que modo as experiências são vividas e como é que o mundo é apreendido, o que nos leva às nossas próprias concepções do mundo. O conceito de Si é móvel, na medida em que existe um Si actual e um Si ideal, ao qual o sujeito aspira. Se a diferença entre ambos não for demasiado grande, pode-se considerar que a pessoa conseguiu alcançar um bom equilíbrio e que se aceita relativamente bem.
1. Desenvolvimento da Pessoa Segundo Rogers
1.1. Factores primordiais
Segundo Rogers citado por Hansene, M. (2004), a pessoa desenvolve-se satisfatoriamente se o ambiente compreender três factores primordiais.
O primeiro é a visão positiva. De facto, cada um procura, naquilo que faz, um reconhecimento. A pessoa procura ser apreciada pelo que é e pelo que faz, sobretudo nos seus primeiros anos de vida.
O segundo factor corresponde à empatia. A pessoa deve ser compreendida por aquilo que pensa, sendo importante tomar em consideração a sua apreciação. É preciso que ela se coloque no lugar dos outros.
O terceiro factor corresponde a congruência, importante para as boas relações interpessoais.
1.2. O processo de se tornar pessoa
Segundo Rogers, C. (1990), o tornar-se pessoa passa pela experiência imediata do eu, na qual a pessoa permite-se examinar os diversos aspectos da sua experiência exactamente da mesma maneira que os sente, tal como os apreende através do seu sistema sensorial e visceral, sem os distorcer para os adaptar ao conceito que faz de si próprio.
Para Rogers (1990), é por meio da terapia centrada no cliente, num ambiente de confiança fornecido pelo terapeuta, que estes aspectos podem ser experimentados em plenitude e sem deformação pelo conceito de “eu”. Deste modo, a terapia centrada no cliente vai fazer com que o cliente se torne cada vez mais consciente dos aspectos do seu “eu” sem pensar na sua relação com o conceito de “eu”.
Chama-se atenção durante o processo para uma aprendizagem de aceitação plena e livre.
Neste processo também se verifica a necessidade da pessoa descobrir que não é destrutiva e admitir plenamente na sua experiencia que existe alguém (o terapeuta) que mantém sentimentos positivos em relação a ela.
Segundo Rogers (1990), um dos principais resultados do processo de psicoterapia seria levar a pessoa a aceitação de si, diminuir atitudes negativas relativas ao “eu” e aumentar atitudes positivas, ficando satisfeita por ser quem é. A pessoa aprende a gostar de si, a apreciar-se, desculpar-se e ficar contente consigo mesma, uma alegria espontânea e livre. Assim, a pessoa passa a ser capaz de se ver a si próprio de forma saudável e satisfatória, como uma pessoa total e que funciona bem, não rejeitando sentimentos mas vivendo-os.
O autor considera ainda que o centro mais íntimo da natureza humana, as camadas mais profundas da sua personalidade, a base da sua “natureza animal”, tudo isso é naturalmente positivo, fundamentalmente socializado, dirigido para diante, racional e realista. Os sentimentos ferozes e associais não são nem os mais profundos nem os mais fortes, o núcleo da personalidade do homem é o próprio organismo que é essencialmente autopreservador e social.
De uma forma geral, segundo Rogers (1990), a psicoterapia é um processo pelo qual o homem se torna seu próprio organismo, sem deformação e sem se iludir sobre si mesmo. Antes da terapia o indivíduo se focaliza em:
- O que é que os outros esperam que eu faça nesta situação?
- O que é que os meus pais e a minha cultura esperam que eu faça?
- O que é que eu penso que é necessário fazer.
Isto significa que a pessoa antes da psicoterapia age constantemente segundo as formas que seriam impostas ao seu comportamento. Porém, isto não significa necessariamente que ele actue sempre de acordo com a opinião dos outros porque, pelo contrário, a pessoa pode procurar agir em contradição ao que esperam dela.
Por outro lado, aquando do processo terapêutico o indivíduo procura colocar questões relativas a:
- Como é que eu tenho a experiência disto?
- O que isto significa para mim?
- Se eu me comporto de determinada maneira, como é que eu simbolizo a significação que isso terá para mim?
Deste modo, por meio da terapia a pessoa passa para uma maneira de agir baseada num realismo que vai oscilar entre as satisfações e as insatisfações que a sua acção lhe trouxer. A pessoa vai acumulando a tomada de consciência e com isso vai acrescentando à experiência ordinária a consciência integral e não distorcida da sua experiência. A pessoa torna-se pela primeira vez o potencial total do organismo humano, isto é, torna-se no que é.
A pessoa seria nesse caso: um organismo humano completo e em pleno funcionamento, um indivíduo que com a terapia torna-se capaz de se controlar a si próprio e está incorrigivelmente socializado nos seus desejos.
Rogers (1990) acredita, contrariamente a outros autores, que o indivíduo quando livre não se torna auto- destrutivo, mas sim, se liberta no homem o homem. Para o autor, a pessoa com uma tomada de consciência livre e não deformante torna-se um organismo que é perfeita e construtivamente realista. Funcionando dessa forma livre e integral, não teremos um animal a temer, nem uma besta a controlar, mas um organismo capaz de alcançar um comportamento equilibrado, realista, valorizando-se a si mesmo e valorizando o outro.
A pessoa descrita por Rogers também será consciente das exigências da cultura, das próprias exigências fisiológicas de alimentação ou de satisfação sexual, igualmente consciente da sua necessidade de relações de amizade como do seu desejo de engrandecimento pessoal, consciente da sua ternura delicada e sensível em relação aos outros, como dos seus sentimentos de hostilidade.
Segundo Rogers (1990), quando temos uma pessoa que é menos que uma pessoa integral, quando ela se recusa a tomar consciência dos diversos aspectos da sua experiência, tem-se nesse caso todas as razões para recea-la e recear o seu comportamento, como o demonstra a actual situação do mundo. Por outro lado, quando ela é plenamente pessoa, é um organismo integral no qual a consciência da sua experiência funciona plenamente podendo por isso ter-se confiança nela, pois, o seu comportamento será construtivo.
Neste processo de passar a ser o que realmente é, esse organismo integral deve apresentar determinados comportamentos (Rogers, 1990):
1. Espera-se que todo o homem coloque as seguintes questões: “qual o meu objectivo na vida?”, “o que procuro?”, “qual é a minha finalidade?”. A forma como os homens respondem a essas questões não é unânime, ou seja, os indivíduos vão orientar a sua vida de diversas formas baseando-se nos seguintes valores:
- Preferência por uma participação na vida responsável, moral, ordenada por si, apreciando e conservando aquilo que o homem conseguiu.
- Gosto pela acção vigorosa na superação dos obstáculos. Abertura confiante à mudança, para resolver os problemas pessoais e sociais e para vencer obstáculos no mundo natural.
- O valor dado a uma vida interior autónoma com uma consciência de si rica e elevada. Rejeição ao controlo de pessoas e coisas em favor de uma visão mais profunda e simpática percepção de si e dos outros.
- Valorizar a receptividade às pessoas e à natureza.
- Ênfase no prazer dos sentidos, procurando o próprio prazer. Enfatizam-se os prazeres simples da vida, um abandono ao momento, uma abertura descontraída à vida.
Em cada cultura encontra-se um determinado objectivo de vida baseado numa dimensão específica.
2. O indivíduo tem medo de olhar por detrás das fachadas porque ele se vê de forma negativa.
3. O indivíduo pode desviar-se daquilo que devia ser, das expectativas colocadas pelas pessoas próximas;
4. O indivíduo percebe-se como fugindo daquilo que a cultura espera que ele seja, ao contrário de uma socialização e adaptação aos valores. O que significa que o indivíduo ao ser o que realmente é, procura ir para além do conformismo, discutindo os valores que o contexto lhe apresenta.
5. O indivíduo procura ir para além de agradar os outros, isto é, ele vai passar a definir os seus objectivos, intenções através da descoberta, na liberdade e na segurança de relações compreensivas de algumas direcções que não querem seguir. Em vez de seguir o que devia ser, dito pelos pais , pela sociedade, ele prefere não se esconder, nem a si nem aos seus sentimentos de si mesmo ou de qualquer outra pessoa que seja para eles importantes.
6. O indivíduo atinge uma capacidade de autodirecção, onde vai optando por objectivos que pretende alcançar. As suas decisões vão estar viradas para actividades e comportamentos que significam alguma coisa para si e os que não significam nada. Para isso, no processo de terapia deve ser atribuída ao cliente essa liberdade para que seja ele mesmo uma liberdade cheia de responsabilidade.
7. O indivíduo apresenta ainda a tendência a tornar-se um processo, ou seja, uma fluidez e uma mudança, não se assustando com o facto de não ter os mesmos sentimentos em relação às pessoas e às coisas. A pessoa passa a ser adepta dessa fluidez.
8. O indivíduo também tende a viver uma relação aberta, amigável e estreita com a sua própria experiência. No início o cliente rejeita um aspecto novo do seu eu mas pouco a pouco começa a aceitá-lo e a assumi-lo como parte de si mesmo, para viver ligado a ele e nele quando se manifesta.
9. A partir do momento em que o indivíduo se abre à sua experiência, dá-se também uma abertura e uma aceitação das outras pessoas.
10. O indivíduo vai confiando cada vez mais no processo que é ele mesmo, valorizando-o.
11. O indivíduo passa para uma direcção geral, ou seja, ele se dispõe a ser, com conhecimento de causa e numa atitude de aceitação, o processo que ele é em profundidade. Deixa de ser uma fachada, não procura ser mais do que aquilo que é, não procura ser menos do que aquilo que é (culpa e depreciação), está mais atento ao que se passa a nível do fisiológico e emotivo.
De um modo geral, para o autor, ser o que se é não é fixo e imutável, mas sim é um processo positivo, construtivo, realista e digno de confiança, em que a mudança se encontra facilitada .
III. O conceito de Pessoa para os povos Bantu
Baseiando-se em cinco monografias sobre a vida e filosofia de diversos povos Bantu, Jahn (1958) faz uma síntese que permite depreender a concepção que os Bantu têm da pessoa. Trata-se das monografias elaboradas por Placide Tempels, o qual estudou as representações mentais do povo Baluba do Congo-Belga (actual República Democrática do Congo); Marcel Griaule que descreveu o sistema do mundo, a metafísica e a religião do povo Dogon (Malí e Burkina Fasso); Germaine Dieterlen que descreveu o sistema religioso do povo Bambara (Malí); Maya Deren que descreveu os ritos do Vaudou (Haiti), e Alexis Kagame que analisou cientificamente o sistema conceptual dos Ruandeses, comparando-o com o sistema conceptual ocidental.
Tempels, citado por Jahn (1958), sustenta que para o africano a pessoa (muntu) é força vital. A pessoa enquanto força vital compreende um corpo visível (Homem na existência concreta) e uma alma (que os africanos consideram uma espécie de pequeno Homem que está por detrás do Homem visível). De acordo com esta concepção de pessoa, quando a
pessoa morre, o pequeno homem que está por detrás do homem visível continua a existir.
A morte é um afastamento da pessoa dos vivos. Portanto, para os africanos, ser pessoa não é o mesmo que ser Homem.
No desenvolvimento da sua tese, Tempels citado por Jahn (1958) fala de reforço e enfraquecimento vital. Segundo ele, para os Negros, os defuntos continuam a viver num estado de vida diminuída, como forças “apequenizadas” que, porém, conservam e até aumentam a potência qualitativamente mais elevada do seu ser. Com efeito, nesta mudança de estatuto, os mortos ganham um conhecimento mais profundo das forças naturais e vitais, inacessível aos vivos.
Segundo Jahn (1958) as informações apresentadas por Tempels são directamente recolhidas da boca do povo, pelo que carecem de precisão, o que deu azo ao levantamento de diversas questões: se a fronteira entre a vida e a morte é assim tão apagada, em que consiste exactamente a morte?
Alexis Kagame citado por Jahn (1958) apresenta uma resposta satisfatória para a questão acima apresentada:
Na língua Kinyaruanda existem três palavras para designar a “vida”: Bugingo, Buzima e Magara.
Bugingo é um termo que exprime a duração da vida, a sua extensão no tempo.
Buzima é uma forma abstracta que significa a reunião de uma “sombra” e um corpo e constitui um princípio actuante que descreve como é que a vida se realiza na ordem biológica em geral; quando a sombra se une com um corpo, então nasce a vida, e ela se prolonga enquanto a sombra e o corpo não se separam. Quando acontece a separação, então ocorre a morte. Segundo Kagame citado por Jahn (1958), o princípio Buzima é comum a todos os seres animados.
Magara: significa a vida na ordem humana e designa o princípio activo que está na origem de todo o nascimento humano. Este princípio representa a vida espiritual.
Segundo Kagame citado por Jahn (1958), Buzima e Magara estão reunidos no homem vivo, isto é, na existência concreta, os dois princípios nunca se encontram separados. A essência do homem vivo é exactamente a participação aos dois princípios e é isto que faz dele um ser humano vivo, um Muzima (em Kinyaruanda).
A pessoa tem em comum com os animais o princípio Buzima (vida biológica) e se distingue deles pela presença de Magara (vida espiritual).
Quando acontece a morte, a vida biológica (Buzima) chega imediatamente ao seu fim, mas a vida espiritual (Magara), embora profundamente afectada, não desaparece. A força vital, a energia que forma a sua personalidade, o que Tempels chama muntu propriamente dito, persiste além da morte. De Muzima (ser humano vivo) se transforma em Muzimu (ser humano sem vida) (Jahn, 1958).
Portanto, o ser humano vivo (Muzima) e pessoa (muntu) não são termos com o mesmo significado, pois muntu compreende tanto os vivos (Bazima, plural de Muzima), os defuntos (Bazimu, plural de Muzimu) bem como os deuses. Tempels citado por Jahn (1958) acrescenta que para os africanos Deus é o grande muntu. Ademais, Kagame citado por Jahn (1958) sublinha que na sua língua existe uma diferença entre viver e existir. Para ele os defuntos não vivem mais, mas eles existem.
1. Finalidade do muntu
Para Kagame citado por Jahn (1958), não é senão por um abuso de linguagem que se pode dizer que os africanos acreditam que os mortos “vivem”. Eles não vivem, mas sim, eles existem no estado de forças espirituais.
Tempels e Kagame citados por Jahn(1958) convergem em afirmar que o defunto, o antepassado, permanece em ligação com a sua descendência para fazê-la beneficiar da eficácia da sua força vital. Somente quando alguém não tem descendência é que se pode dizer que ele está “verdadeiramente morto”.
Para Kagame citado por Jahn (1958), o desejo inato dos seus compatriotas de existir sem fim se incarna na realidade actual, o que de alguma forma difere das crenças ocidentais. Sendo a morte uma realidade inevitável, o ruandês quer pelo menos continuar a sua existência de vivo na sua descendência. Daí que a Filosofia africana parte do Homem e lhe reconhece uma finalidade imediatamente perceptível: o Homem vivo deve perpetuar-se por geração. Por outras palavras, o fim último da existência do ser humano vivo é de se perpetuar pela procriação.
Segundo Jahn (1958:120), “a pior desgraça que pode acontecer a um ser humano vivo é morrer sem descendência e a pior maldição que se pode proferir contra um inimigo detestado é desejar que ele morra sem descendência. Pois, é isto, aos olhos do africano, o fracasso absoluto, a catástrofe sem socorro, que condena não só aquele que assim morre sem filhos vivos, mas também todos os antepassados da sua raça que lhe precederam neste mundo, a se ver durante toda a eternidade frustrados daquilo que foi mesmo a razão da sua existência: perpetuar-se reproduzindo-se, subsistir ao longo dos tempos através da cadeia de vivos que se geram uns aos outros”.
Jahn (1958) constata que os mitos africanos seguem uma lógica rigorosa e do seu conjunto resulta um sistema do mundo, claro e coerente, o qual revela princípios filosóficos que concordam com os que se depreendem das análises de Tempels, Griaule, Deren, Dieterlen e Kagame. De acordo com a filosofia africana, os defuntos são forças espirituais que podem agir eficazmente sobre os seus descendentes e que não têm outra finalidade senão a de consolidar as forças destes. Com efeito, quando um africano se torna pai de uma criança, ele agradece primeiro aos seus antepassados, pois, foi graças à intervenção deles que ele teve esse filho. Acredita-se que o nascimento corporal é o produto da união entre um corpo e uma sombra enquanto que o princípio de vida espiritual provém dos antepassados. A força que se mantém em existência nos antepassados torna-se efectiva num Homem vivo. É por isso que geralmente se dá à criança o nome do antepassado cujo Magara (princípio de vida espiritual) é suposto manifestar-se nela.
Pelo princípio Magara surge um sistema de reforço e enfraquecimento da vida. Segundo este sistema, uma força pode reforçar ou enfraquecer interiormente uma outra força, e o crescimento individual só é possível no e pelo crescimento da energia específica da linhagem ou da espécie humana na sua totalidade (Jahn, 1958).
Há uma interdependência no processo de reforço e enfraquecimento da força vital entre os homens vivos e os defuntos. O que cresce é o “Magara”, a força de vida que se desenvolve nos homens vivos em bem-estar e em felicidade e se engrandece sob a influência dos anciãos defuntos. É esta força que distingue o Homem de todas as outras criaturas vivas; a inteligência, a sabedoria depositária de felicidade; mas ela pertence ao domínio dos defuntos e somente a intervenção dos defuntos é capaz de pô-la ao alcance dos vivos. Neste sentido, é possível dizer que o sábio está mais próximo dos mortos e participa já da sua condição (Jahn, 1958).
Por outro lado, os vivos têm também a possibilidade de fortificar os antepassados, de aumentar pela veneração, pela oração e pelo sacrifício, o poder do Magara dos defuntos. Com efeito, o poder do defunto é diferente de um caso para o outro de acordo com a importância da sua descendência viva e do fervor do culto que lhe é devotado.
Os princípios aqui expostos, embora resultem de estudos circunscritos a algumas sociedades africanas, encontram eco na literatura tradicional de vários outros povos africanos. Senghor e Birago Diop (ambos do Senegal) Samuel Mqhavi e Lettie Tayedzerhwa (ambos da África do Sul) e Amos Tutuola (da Nigéria) fizeram obras que estão em sintonia com os princípios aqui mencionados.
No caso de Moçambique, o investigador Martinez (1998), no seu livro “El Pueblo Macúa y su cultura” sublinha a orientação colectivista da pessoa macua e afirma que a metafísica do povo Macua é comum a de outros povos Bantu.
IV. Conclusão
Ao longo do presente trabalho procuramos apresentar a concepção de pessoa a partir de duas perspectivas, nomeadamente: Ocidental, representada por Carl Rogers e a Bantu-africana, defendida por Tempels e Kagame.
As duas perspectivas têm em comum o facto de apresentarem a pessoa como uma realidade dinâmica, passível de aperfeiçoamento ou desenvolvimento ao longo da vida. Todavia, uma análise das duas perspectivas permite descortinar diferenças significativas.
Para Rogers, uma pessoa já contém em si uma energia que é fonte do seu desenvolvimento através de um processo de auto-actualização. Para ele, a noção de pessoa está circunscrita à existência concreta e os atributos que indicam o seu desenvolvimento são a liberdade e a autonomia. Pode-se afirmar que uma pessoa é “mais pessoa” quanto maior for a sua autonomia, a sua liberdade e a consciência de si mesmo. (Rogers, 1990). Baseando-se na sua autonomia e liberdade, a pessoa é capaz de fixar uma finalidade individual para a sua vida.
Para o povo Bantu, a pessoa é sobretudo uma força vital que cresce ou diminui graças à interacção com outras forças vitais, nomeadamente os da sua linhagem. Os antepassados aumentam a força vital (Magara) dos vivos, fazendo-os beneficiar da eficácia da sua força vital enquanto que os vivos aumentam a força vital (Magara) dos antepassados através da veneração e do culto a eles. Para os africanos-Bantu, a pessoa é uma realidade que transcende a existência concreta, na medida em que continua activa para além da vida biológica. Embora constituída por princípio de vida biológica e por um princípio de vida espiritual, é sobretudo o princípio de vida espiritual que faz a pessoa propriamente dita (Tempels e Kagame, citados por Jahn, 1958).
Para o africano, não é a sua autonomia nem a sua liberdade que indicam o desenvolvimento da pessoa, mas sim, a sua relação com os antepassados e a maneira como a pessoa cumpre a sua finalidade existencial. Todos os africanos Bantu têm uma finalidade última comum: perpetuar-se pela procriação. O muntu é sobretudo um procriador (Tempels e Kagame, citados por Jahn, 1958). Esta concepção da pessoa permite entender o respeito que gozam as pessoas com numerosa descendência e o relativo desprezo a que estão devotados os estéreis e todos aqueles que adoptam estilos de vida que não favorecem a procriação.
O povo moçambicano enquadra-se no universo metafísico Bantu porquanto a maior parte do seu povo pertence ao grupo Bantu. É a participação nos princípios metafísicos Bantu que explica a prevalência de alguns fenómenos na sociedade tradicional e moderna moçambicana, tais como: feitiçaria, culto aos antepassados, possessão pelos espíritos e diversos rituais.
O psicólogo precisa de compreender a metafísica Bantu para poder intervir com eficácia em Moçambique.
3 comentários:
Optimo.
Bela abordagem sobre a cultura e o conceito generico da pessoa humana, no pensamento africano. Bem haka
boa reflexao. contudo peco as fontes citadas, visto que nao tem referencial.
gostei muito do que diz respeito a pessoa na perspectiva Africa. mundu( sena)
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